Grandes Cicatrizes

paulohenrique

Bem, o texto anterior reflete um pouco sobre a poliomielite. Cada poliomielítico tem suas características. Seria como uma impressão digital em que cada um tem suas extremas dificuldades. Acredito até que existem casos que, por orgulho, enfrentam grandes obstáculos e não se permitem parecer fracos.

Vejo, por exemplo, amigas acometidas por essa doença que lutam até onde podem para conseguir ir onde desejam estar, muitas vezes até ajudando pessoas que quase nada tem de errado com seu físico. São pessoas que doam seu infinito amor àqueles que buscam por ajuda, por conforto, por melhores oportunidades.

Mas, como eu disse, cada caso tem o seu sofrer e, a cada dia que passa, a cada ano ou décadas, a pólio nos afunda cada vez mais. Sua ação de causar mais dano aos músculos de certa maneira se estaciona, mas a usabilidade dos músculos menos afetados, pelo abuso desses, acaba por cada vez mais prejudicá-los.

Eu por exemplo, de tanto apoiar meu braço esquerdo no direito, sendo que é com a mão esquerda que eu faço praticamente de tudo, acabo por oferecer mais dores ao meu pulso direito e assim, tenho que dar alguns minutos de descanso quando chega a ficar insuportável.

Poderia expor aqui cada detalhe de meu corpo, as sensações que tenho, os pontos de dores que incomodam e assim, poder mostrar com mais claridade e interesse como é ser um sobrevivente da pólio.

O mais difícil às vezes se torna a parte respiratória. É de extrema dificuldade puxar o ar sendo que sua traqueia encontra-se bloqueada por catarro e, por mais que eu tente tossir, não consigo manejar esse catarro que, para mim, parece que tem vida própria. Ainda mais nas noites em que, estando tranquilamente dormindo, os brônquios são fechados. Dá muita raiva isso.

Vejam bem, essa madrugada por exemplo, ouço a Eliana me acordar e pede que eu chame a enfermeira. Ligo meu celular e, quando estou ligando para o posto de enfermagem, pergunto o que ela precisa. Ela diz estar com dores nas pernas e eu sei muito bem o que é isso. Sendo assim, quando me atendem, eu logo informo que a Eliana está com dor na perna. Não demora muito e vem uma técnica de enfermagem em busca de oferecer um melhor conforto para a Eliana.

Agora, e quando tem momentos em que, um membro seu, com dor, por mais que você tente arrumar alguma posição de alivio, você não encontra? Sim, esses momentos existem e, para não ficar tomando Dipirona o tempo todo, eu, por ter melhores condições que a Eliana e, minha cama ser daquelas motorizadas que posso descer ou levantar a cabeceira quando quiser, se não estiver suportando mais a dor, procuro, por mais difícil que seja, uma posição de conforto.

Olha, algo que muitas vezes incomoda, por tanto tempo me manter na mesma posição, é a circulação sanguínea. Nesse exato momento estou sem dor, mas posso esperar cerca de 15 ou 30 minutos que meu fêmur direito começará a doer, seguido da falta de circulação. Assim, quando abaixo a cabeceira da cama, a pressão sanguínea volta e toda a perna fica formigando. Bastam apenas alguns minutos para que eu novamente erga a cabeceira e retorne aos meus afazeres, como escrever este texto, por exemplo.

Quando eu andava de cadeira motorizada, não era algo que me dava grandes prazeres e felicidade. Claro, era a oportunidade de poder passear, de estar um pouco fora do hospital, de assistir a um filme em uma sala de cinema, mas as dores me seguiam. Na cadeira, o que muito me doía era minha nádega direita, pois assim que eu sentasse, ficava em cima de um músculo que, em menos de 15 minutos, sem a circulação na perna, doía demais.

Eu usava uma bolsa d’água para tentar aliviar a pressão do meu peso sobre o meu bumbum, mas pouco aliviava. Muitas vezes, eu pedia para me pegarem por debaixo do meu joelho e assim, me puxar um pouco para frente, mas o resultado era muito pouco.

De uma tarde toda sentado, do início que me colocassem na cadeira e que estava de certa maneira confortável, até o momento de ir para a cama, eu estava quase que com a bunda toda fora do assento.

Sala de cinema era o lugar mais tranquilo que eu tinha, pois, quando era para assistir algum filme, pedia para quem estivesse me acompanhando para deitar o encosto da cadeira para que assim eu pudesse ficar um pouco deitado. Assim, sem o apoio das pernas e estas balançando no ar, quase na metade do filme vinham as dores nos joelhos. Eu sentia claramente os músculos por cima da patela serem esticados e assim, não tendo como puxar a perna para cima, pegava na perna da calça e tentava levantar um pouco a perna. Não tendo sucesso com minhas próprias forças, pedia para o amigo que estivesse comigo erguer um pouco minhas pernas pedindo também para que fosse o mais devagar possível, por mais que ele fosse sutil em seus movimentos para aliviar minhas pernas, vinha uma dor dilacerante. Com o tempo passava e dava certo alívio. O problema era que eu pedia que ele ficasse segurando um pouco. Ele perdia a melhor parte do filme.

Algo que jamais posso negar é que estou cercado de pessoas maravilhosas. Em meu tempo de andanças, todos que me ajudavam entendiam minha situação e dedicavam o seu melhor para eu poder estar ali em um mundo que tanto amo, o cinema.

Hoje, cerca de dez anos depois, tudo de certa maneira se foi. Não tenho mais a oportunidade de sair como eu saia, não tenho mais a oportunidade de assistir as estreias que eu tanto amava.
Quer dizer, tenho tudo isso. Basta ir atrás e resgatar tudo aquilo que deixei, mas me restam forças, me resta coragem, me resta a fé.

O que muito conquistei no passado não foi simples, não foi dado de graça e muito menos comprado. Foi por mim conquistado com muita persistência, muito grito, muita briga e muitos pedidos de desculpas.

Hoje, tentar reaver tudo isso me passa cenas de um filme triste. Mesmo regado de momentos alegres e divertidos mas, torno-me fraco quando no momento de tudo aquilo estar novamente ao meu alcance, vem de encontro a mim as doloridas dores causadas por quem me deixou grandes cicatrizes, a poliomielite.