Heróis antes de mim
Quando criança, lembro que haviam dois pacientes que vieram antes de mim e já estavam internados havia um tempo aqui. Não sei muito bem o que eles tinham, mas dois eram tetraplégicos.
Um era um senhor e se chamava Dionísio. O outro, que tinha o nome de Toninho, também não tinha movimento. Aparentemente ambos haviam sofrido algum acidente que os deixaram paralisados por completo.
Nessa época, não tinha muita intimidade com eles –apenas eram amigos cujos assuntos giravam em torno de times de futebol. Algum tempo depois, o Toninho morreu.
Lembro claramente de uma certa noite. Naquela época eu era magrinho e pequeno e conseguia andar de cadeira de rodas. Como muitos devem saber, tenho um certo medo de janelas, pois assim revelo em meus textos anteriores. Assim, fui correndo para o quarto do Dionísio, buscando em sua companhia (ele ficava deitado em uma cama alta) um conforto diante daquela sensação de solidão.
Ficava horas ao seu lado, tentando encontrar algum assunto para conversar, pois ele não tinha televisão para que me entreter. Ficávamos sozinhos ao som de um rádio AM, em um
quarto iluminado por uma lâmpada amarela pendurada por fios no teto. Em certos momentos, eu olhava tudo ao meu redor e tinha a certeza de que nenhuma pontinha da janela poderia ver. Quanto mais encostasse em sua cama, melhor.
Os anos foram passando. Apesar de sua tetraplegia, o Dionísio tinha uma doença no dedão do pé da qual nunca se curara. Houve uma certa manhã em que médicos que eu jamais vira na vida vieram fazer algum procedimento para tentar melhorar sua condição. Eram cerca de três, de máscaras e gorros em suas cabeças e diante de uma bandeja com algum tipo de material.
O momento mais arrepiante foi ver um desses médicos pegar uma seringa com uma agulha metálica, direcioná-la para cima, apertando o êmbolo da seringa, tirando todo o ar que havia dentro dela, até poucas gotas daquela substância sair. De repente, o médico aponta a agulha entre o dedo e a unha de Dionísio. Com meu olhar arregalado, foco minha atenção para o rosto dele atento a um grito quando, de repente, ele nem sequer expressou dor!
Uma certa manhã, quando o Dionísio estava no terraço curtindo o sol, algumas pessoas vieram até ele. Uns pareciam médicos e outros estavam com terno e gravata. Não tinha noção do que estava se passando. Meses depois, vem a notícia de que o Dionísio iria embora para sua casa. Em poucos anos, morreu.
Viver em um ambiente hospitalar faz você ter amizades ligeiras, porque os que entram para se tratar ficam pouco tempo. Mas há sempre um que fica tempo suficiente para o envolvimento se tornar uma ponte sólida.
João era um jovem, deveria ter uns 15 anos. Era negro, bem magro, torcedor do Santos Futebol Clube. Ele era tetraplégico, mas eu não tinha certeza o que havia causado a paralisia. Ele dependia de aparelho de respiração artificial. Apesar de seu estado ser de atenção, era um rapaz de muito falar. Vivia cantando uma música que eu achava engraçada dizendo “Eu não quero mais pepino”; quando eu perguntava qual música era, ele dizia que gostava muito daquela canção. Alguns meses depois, sua mãe lhe trouxe um disco da dupla Jacó e Jacozinho com o tema da canção que João tanto nos divertia.
João tinha um problema pulmonar que lhe obrigava a usar dreno no peito frequentemente. Poucos dias após se recuperar, a situação se agravava novamente. Esses dias sofríveis que João passava eram de extrema agonia. Quando ele precisava dessa intervenção, médicos especialistas vinham para lhe colocar o dreno. Só este início já lhe era extremamente dolorido.
Passados alguns dias, quando o dreno não era mais necessário, vinham outros médicos tirar o tubo na lateral do tórax. Esse final era duplamente dolorido; João, em meio ao choro, implorava por anestesia em um local onde infelizmente não há efeito do anestésico. Parecia um ato cruel ver aquela cena onde os médicos tiravam aquela sonda e os olhos vermelhos de João olhando para mim. Eu não tinha o que fazer, apenas lhe dizer que iria passar logo.
Houve um dia que o médico que foi colocar o dreno nele foi o doutor Fernando. Um médico que um dia merecerá um texto especial, por também ter sido um grande pai para a gente. Foi surpreendentemente tranquilo. João não sentiu dor quando o doutor Fernando fez o corte na lateral de seu tórax para introduzir o tubo. Foi um dia calmo e muito feliz.
Certa vez a sua mãe, uma senhora muito humilde e simpática, lhe trouxe uma imagem de Nossa Senhora. Era como se fosse uma pedra de cristal, com cerca de 30 cm de altura. Nessa pedra, na parte da frente lapidada, havia a Nossa Senhora bem detalhada, com capa de tecido. A mãe colocou a imagem para que esta o protegesse.
O momento de tirar o dreno chegou depois de poucos dias. João estava feliz pois, sendo doutor Fernando que iria tirar, seria tranquilo. Mas, infelizmente, na teoria a prática foi bem outra. Doutor Fernando tomou todos os cuidados para tirar os esparadrapos que protegiam o corte na pele de João. Ele havia aplicado um anestésico que não surtiu efeito. De tanto esperar, não houve outra alternativa a não ser tentar uma ação rápida e mais indolor possível. Da mesma maneira em que se tira os pelos com a cera a dor é maneira suportável, a sonda saiu de forma rápida –mas com o índice de dor triplamente sentida.
Tudo isso foi no final de 1977 ou início de 1978 e eu estava com 10 anos de idade. Foi o ano da estréia de Star Wars no cinema e a Tânia, uma companheira que viveu um bom tempo aqui comigo, ganhou de seu pai um álbum de figurinha.
João precisava novamente ser drenado, só que, dessa vez, com outros médicos; João começa a chorar logo no início. Eu estava tão fragilizado com o seu sofrimento que chorei junto.
Para que meu desespero não agravasse a situação, me levaram para longe, me emprestando o álbum de figurinha de Star Wars que a Tânia havia ganho –o que não adiantou muito, pois, ouvindo os gritos de João, minhas lágrimas caíam molhando o travesseiro sob minha cabeça. Não me lembro quanto tempo mais, se dias ou meses, Deus livrou João de seu sofrimento.
Foi uma época entre o desconhecido e a ansiedade doentia. Eu estava em uma enfermaria grande, um salão mesmo, com mais seis amiguinhos que durante anos e décadas ficaram ao meu lado. Tudo girava em torno da gente, quando a última companheira, Cláudia, veio viver conosco. Eliana veio um pouco antes de João morrer; com a vinda dessa minha muito amada irmã, fomos acometidos por uma situação que poucos sabiam como lidar: a sarna.
Com a epidemia desenfreada, que até médicos e auxiliares pegaram, tivemos que sair daquele salão grande para sermos acomodados em quartos menores. A coceira que abraçava nossos corpos eram torturantes, as meninas que não tinham movimentos para se coçar viviam entre choro. Eu me coçava de forma histérica, com vários pontos de meu corpo formando bolhas doloridas e que tinham que ser espremidas para tirar o pus, sinal de inflamação.
Nossos cabelos foram raspados para tentar evitar a peste, mas nada dava sinal de melhora. Tomávamos banho com um comprimido de permanganato de potássio dissolvido. Além de deixar a água roxa, tínhamos nossos corpos dignos da pantera cor-de-rosa. Além desse procedimento, era usada também maisena. Somente pouco tempo depois, com o uso de um remédio chamado Tetmosol, é que a era da sarna saiu de nossas vidas.
Neste tempo de tratamento, minha companheira de quarto foi a Eliana. Não me recordo muito bem sobre nossas conversas, mas lembro das oportunidades de ter minha cabeceira erguida, poder olhar pela janela, as pessoas e carros passando.
Em algum momento, nesse tempo, um rapaz, vítima de um acidente de carro, foi internado. Tetraplégico, Carlos aparentava ter mais de 30 anos. Era engenheiro e muito inteligente. O que me fazia querer me aproximar dele era que ele tinha uma TV em cores! Eu nunca tinha visto cores nas TVs antes, e aquela me enchia os olhos.
O fato mais incrível com o Carlos aqui foi que, de repente, o pessoal da manutenção passou a vê-lo. Todos os dias, entre eletricistas e mecânicos, ele dava instruções sobre algo, algum invento que, mesmo em uma cama, desenvolveu para sua vida. Pediu que esses funcionários pegassem um criado mudo e, em sua tampa, fizessem um corte. Dias depois, outros vieram com aquele invento
para ele testar e, como não tinha dado certo, foi levado para ajustes. Não tenho ideia de quanto tempo levou, mas Carlos fez de um criado mudo um aparelho de aspiração traqueal.
Conheci a mulher e a mãe de Carlos, foi uma amizade não muito próxima, mas muito respeitosa. Retornamos todos para o grande salão, menos o Carlos, que ficou sozinho em seu quarto. Um dia, em um inicio de noite, vieram buscar o Carlos, ele foi levado para ver o nascimento de seu filho. Faz bem mais de 20 anos que não sei mais sobre ele; depois que ele teve alta, sua mãe e a mulher vinham pedir algum medicamento ou cânula. Suas vindas foram cada vez mais escassas e, hoje, resta apenas a lembrança de alguns heróis que marcaram minha vida.