Alguém que passou e nem sei quem foi
Era uma certa tarde, eu acabara de ser transferido para um quarto novo. Não sei quantos anos eu tinha na época, mas penso ter sido menos de dez.
Não estava em um berço, mas numa cama confortável que, por o quarto ser pequeno, eu ficava de lado, encostado na parede.
Na minha frente havia outra cama, maior que a minha, mas vazia, com o colchão coberto por um lençol branco e limpo. Eu só conseguia ver as manivelas que servem para erguer a cabeceira ou elevar as pernas.
Na direção da minha cabeça havia um pequeno corredor, que dava para as janelas que iluminavam o quarto. Do lado oposto, o dos meus pés, estava a porta de entrada para o quarto onde eu estava. A porta estava aberta e dava para ver o corredor. Por vezes, passava alguém.
Tudo era silêncio, solidão e a luz fraca vinda de uma tarde nublada.
Passado algum momento, entram dois auxiliares trazendo uma maca com alguém deitado sobre ela, estacionam-na ao lado da cama vazia e transferem um paciente que havia acabado de ser operado.
Eu não conseguia saber quem poderia ser, não dava para ver o rosto. Depois de acomodá-lo, o silêncio volta a reinar.
Olho atento para os detalhes, em busca de algo novo. Olhando para o paciente em minha frente, percebo que sua perna direita fora amputada, o pouco que sobrou dela estava erguida, fixa com algum tipo de cordão, presa nas hastes de ferros no alto da cama. Era apenas isso que dava para ver.
As horas foram passando e praticamente nada mudou, a não ser por um pequeno detalhe. A parte que sobrara da perna daquele rapaz estava começando a ficar vermelha. Eu achava estranho aquilo, fiquei preocupado. Mas apenas observei. Poucos momentos depois, vieram fazer o curativo.
Os dias se seguiram e aquele rapaz ainda permanecia em minha frente. Pouca coisa ele falava, e mesmo eu, em minha condição, sem poder vê-lo, não tinha como prover uma amizade.
Os dias demoravam muito a passar. Eu não tinha muito com o que brincar. As horas eram apenas o explorar de meus olhos, de um teto alto, de prestar atenção na luz do dia que preenchia o ambiente.
Certa vez, na companhia daquele rapaz, ainda sem jamais termos nos comunicado, tive a oportunidade de ficar sentado na cama. Foi um momento maravilhoso: poder ver tudo além da minha altura, os lugares que minha visão alcançava. Mas ainda assim não consegui ver o rosto daquele rapaz, pois sua cama era bem alta.
O que me fascinou naquele momento foi poder ver as janelas abertas, as copas das árvores banhadas pela linda luz do Sol, dançantes pela brisa que passava. Senti felicidade naquele instante –uma grande satisfação, uma certa liberdade na alma.
Apesar dos dias agradáveis que tive, alguns foram de muito sofrimento. Fiquei longos minutos pensando se valeria a pena expor certos momentos que passei, mesmo aqueles que não expressassem tanta beleza, mas que foram algo que vivi. Penso que vale muito expor cada gota do oceano, pois quando observarmos o todo, podemos refletir o quanto a vida pode ser maravilhosa, mesmo ela nos dando provas extremamente difíceis.
Um certo dia, naquela época, um desconforto tomou conta de mim. Muitas vezes, passei por situações difíceis, que não são agradáveis de expressar.
Mas sobre aquele paciente que esteve junto comigo, bem, ele foi transferido para outro andar, ou quarto, não sei. Jamais tivemos a chance de falar um com o outro novamente.