Um médico, um pai, uma dor: a saudade

paulohenrique

Quando criança, a questão familiar não era algo muito relevante, aliás, eu não tinha noção do que seria ter um pai ou uma mãe. Até que houve um dia que comecei a sentir falta de meus progenitores.

Enquanto essa sensação da falta familiar não acontecia, os que cuidavam de mim aqui no hospital foram os que fizeram verdadeiro papel de pais e mães. O mais especial deles, hoje um médico aposentado, foi o dr. Giovani, que eu sempre chamava de pai.

Na realidade, ele sempre foi para mim, quem me salvou quando vim para cá. Lembro vagamente dele bem no início de tudo, quando eu precisava de ajuda.

Naquela época, não tinha consciência das horas, dos dias, dos meses e anos. Para mim, momentos alegrias eram aqueles que me davam certa liberdade como estar em uma cadeira de rodas e poder explorar os corredores e quartos do hospital.

Eu não gostava de ficar em meu berço onde eu nada podia fazer a não ser ficar olhando para as paredes ou contando os pontos pretos do chão.

Não me recordo que ano foi mas, durante a década de 1970, uma certa manhã, depois do banho, em vez de me vestirem com os macacões cheios de bichinhos que eu gostava, me colocaram uma camisa e um short.

Instantes depois naquele dia, eu e mais poucos amiguinhos que viviam comigo na época, fomos levados para um passeio fora do hospital. Foi um piquenique no zoológico. Lembro-me bem pouco desse dia encantador, que teve a companhia da Tia Luiza, que também trabalhou aqui por longos anos e que já faz um bom tempo que se aposentou.

Tia Luiza ou Tia Lu era também como uma mãe, ofertando um grande amor para todos que estavam naquele momento no hospital.

No zoológico, pude ver ao longe o macaco, que pareceu ter acenado para a gente, vi também o habitat das cobras.

Mas o que nitidamente lembro é que naquele dia me deu vontade de fazer xixi. Como não havia informações de onde haveria um banheiro, dr. Giovani me pegou e me sentou em seu joelho com o short abaixado.

No instante em que eu estava me aliviando, vendo a terra ser molhada, observei os sapatos do “pai Giovani” e começei a mirar meu “pipi” em seus calçados, o que foi motivo de grande sorriso e diversão.

Na minha vida aqui no hospital, jamais poderei dizer que vivi situações extremas a ponto de não suportar, pois mesmo diante de tantas limitações e restrições, tenho sim, saudades de bons momentos que tive aqui e que, vez ou outra, se mostram presentes, até como por exemplo a luz do sol iluminando o quarto.

Quando criança, obrigado a ficar deitado, eu chorava. Dr. Giovani me perguntava o que se passava e eu, sem olhar em seus olhos, apenas para o seu par de sapatos brancos, com lágrimas fazendo caminho em meu rosto, descendo até meu nariz e caindo como gotas, respondia que queria ir para a cadeira de rodas, mas que a “tia” não queria me sentar.

Com o meu clamor entre lágrimas, o médico disse que à tarde me colocariam na cadeira e que eu voltaria a sorrir.

A poliomielite era bem desconhecida naquela época e um dos grandes problemas e preocupações que tanto médicos e enfermeiras tinham era o fato de eu ter uma escoliose.

Como não tenho sustentação muscular no corpo, o peso poderia provocar uma curvatura em minha coluna. Se isso acontecer pode haver uma certa pressão pulmonar e eu não consigo ter uma respiração correta.

Como recebi todos os cuidados, embora hoje eu enfrente algumas dificuldades, é tudo natural, pois ninguém está livre de envelhecer.

Uma vez, pai Giovani fez uma linda surpresa para todas as crianças que haviam aqui. Depois de termos tomado banho, fomos todos levados a uma sala. Vi ele mexer em uma máquina estranha, com duas hastes. Em uma delas, ele colocou um rolo de onde saia uma fita.

Ele passou a fita nas engrenagens da máquina e a prendeu em outro rolo que parecia estar vazio. Tudo pronto, ele pediu para olharmos para um lençol branco que estava na parede. Apagaram-se as luzes e de repente começou a passar um desenho naquela tela improvisada. Era Robin Hood da Disney, de 1973.

Fiquei tão encantado com aquele desenho, não com o desenho em si, mas, com a maneira como foi exibido: a imagem bem grande no lençol, bem nítido e claro. O sucesso foi tanto que pai Giovani disse que passaria de novo para as outras crianças que não puderam assistir da primeira vez.

Eu queria muito poder ir de novo. Quando chegou o momento da nova exibição, não foram me pegar para a sessão. Eu gritava aos prantos querendo ver aquele cinema de novo, mas ninguém deu atenção para mim.

Pai Giovani era um grande companheiro. Certa vez, eu ainda era garoto, lembro-me de um início de noite em que ele estava de plantão no hospital e eu estava na cadeira de rodas, em frente ao posto de enfermagem.

De repente, ouvi um grito vindo de uma das atendentes de enfermagem e no outro lado, outras atendentes rindo da brincadeira do Dr. Giovani, que assustava algumas das atendentes usando uma máscara de borracha digna de um filme de terror. Instantes depois, ele veio até a mim, mostrando o adereço, o que me fez muito querer aquilo para mim. Anos depois, ele me deu de presente.

Muitos de minha época irão se lembrar de um brinquedo clássico, o Forte Apache. Atualmente, somente aqueles que têm coleções de brinquedos têm ideia do que estou dizendo. Pai Giovani, certa noite de plantão, sem eu esperar, me presenteou com aquela maravilha, uma caixa cheia de índios, soldados, cavalos e carroças, tudo de plástico.

Vários momentos que jamais vou esquecer tive aqui com o pai Giovani. Certo dia, eu estava no colo de alguém, na sacada do prédio do Instituto de Ortopedia, pois eu não conseguia ver a paisagem, devido o peitoril ser alto.

Era o final do plantão do dr. Giovani que saia do prédio rumo a sua motocicleta. Consegui ver de relance a imagem dele botando o capacete e se despedindo de mim.

Ele, então, um dia, pediu para que tia Luiza me levasse até ele, no andar térreo. Foi inesquecível. Ele me colocou na garupa da moto, ligou o motor e pude sentir a vibração da potência em meu corpo, uma emoção maravilhosa.

Sorri como resposta à pergunta dele se eu havia gostado. Então, pai Giovani me retorna aos braços de Tia Lu, coloca seu capacete, pisa no pedal da moto, se despede e vai de retorno para sua casa.

Muitas vezes, em seus plantões noturnos, pai Giovani estava ao meu lado. Assistíamos às séries de TV Bareta e Kojak. Foram momentos verdadeiros de um pai com seu filho.

Diversas crianças devem ter tido momentos encantadores como esse que expressarei agora. Em uma certa manhã, eu em meu berço, no corredor, pai Giovani disse que mostraria algo para mim. Ele vai até o aposento dos médicos e em menos de dez minutos se aproxima com uma toalha em seu colo, parecia que estava embrulhando algo.

Quando menos espero, ele me diz: “Olha, Paulo”. E quando vejo era um filhote de cachorro, lindo. Tia Lu, ao meu lado, diz para eu fazer carinho nele e passo minha mão sentindo a maciez de seus pelos. O cachorrinho estava tremendo de frio, lembro claramente disso. Depois, pai Giovani, infelizmente, teve de levá-lo embora.

Era uma sexta-feira comum. Eu já estava na adolescência e pai Giovani vem até a mim e diz: “Paulo, vou para o meu sítio este final de semana, na segunda, quando eu voltar, trarei uma surpresa”.

Aquelas palavras me fizeram sorrir e não houve um momento naquele sábado e domingo em que eu não pensasse no que o pai Giovani traria.

Quando ele chegou, naquela segunda de muitos anos atrás, eu estava na ansiedade. Ele pergunta: “está preparado?”. Claro que eu disse que sim. Muitas auxiliares e atendentes da época estavam aflitas. Algumas perguntavam se ele iria realmente me dar aquilo, o que em alto e bom tom ele respondia que sim.

Pai Giovani aparece, então, com um aquário de vidro redondo. O que continha nele não era um peixe, mas sim, poucas pedras. Quando olhei atentamente, vejo dois pares de olhos bem arregalados dentro, e dois corpos verdes. Eram duas pererecas!

Sem temer, enfiei minhas mãos dentro do aquário para pegá-las quando, de repente, elas pularam e gerou uma gritaria generalizada. Somente Tia Lu aprovou que eu brincasse com elas.

Lembro-me de um passado não muito recente, aliás, era o início da TV Rede Manchete, pois na época, estava passando uma minissérie chamada “A Saga do Colorado”.

Naquela época, alguém havia me dito que pai Giovani fazia uma pizza muito deliciosa. Sabendo disso, comecei a incomodá-lo querendo muito comer uma pizza feito por ele.

Demorou, mas, dias depois, de tanto eu pedir, ele veio com não somente uma, mas quatro pizzas feitas por ele, todas dignas de respeito de quem realmente tem o dom de fazer algo com muito amor.

Praticamente uma vida ao lado de um médico que foi um dos responsáveis por hoje eu estar aqui, escrevendo essas minhas memórias.

Houve momentos felizes, outros nem tantos. Houve conversas, outras vezes discussões. Houve alegrias, houve tristezas. Mas, em nenhum momento, por mais que eu tenha errado, jamais deixei de expressar meu infinito agradecimento a quem pode me ofertar muita alegria e motivo para continuar minha luta, vivendo com grande alegria.