Memórias Parte 3

paulohenrique

No início de minha vida aqui no hospital, surgem lembranças de situações doloridas. No pulmão de aço, tento olhar para os lados quando, subitamente, uma dor percorre meu pescoço, justamente por uma espuma áspera estar me apertando para impedir a entrada e saída de ar de dentro daquele imenso aparelho que também me dava medo.

Apenas com a cabeça para fora, olhando para o alto, um espelho me permitia olhar para a frente. Não tenho ideia de que momento do dia poderia ser, mas o que vem à minha mente parecia ser o início de uma tarde. A luz vinha da janela, e a do quarto estava apagada.

Alguém se aproximou, abriu uma pequena abertura lateral do pulmão de aço e pude sentir ser tocado dentro daquele aparelho que somente minha cabeça ficava exposta. O toque acusou eu estar molhado, sendo então necessário trocar minha fralda.
A pessoa que estava presente pega duas alavancas, uma de cada lado, que são puxadas para abrir aquela câmara que de certa maneira me sentia protegido. Com o pulmão de aço aberto, sinto o frio abraçar o meu corpo inerte. A pessoa que cuidava de mim coloca sua mão entre a espuma e meu pescoço, puxando em seguida de dentro para fora uma correia de couro, prendendo-a nos pinos na base da frente do aparelho e afrouxando a pressão que aquela grossa espuma fazia em meu pescoço, dando-me liberdade para poder virar para os lados.
Após esta abertura, sou arrastado para o meio da cama que pertencia ao pulmão de aço. Rapidamente, minha fralda é trocada, assim como os lençóis que também foram molhados por meu xixi.

Já sequinho e limpo, sou novamente arrastado para cima, e minha cabeça é passada naquela abertura. Um tecido é envolto em meu pescoço, um travesseiro é ajustado sob minha cabeça e logo em seguida as correias que prendiam a grossa espuma são soltas, fechando, assim, a abertura em torno do meu pescoço permitindo novamente o desconforto. Em instantes, a câmara é fechada. Aquecido acompanhado da solidão, sou envolvido pelo sono, pesando sobre minhas pálpebras terminando em minhas lembranças, aquele inesquecível dia.

Não sei quanto tempo mais, estes momentos se repetiram, entre noites e dias nos quais dentro de uma câmara barulhenta, tenho lembranças de momentos de grande susto.

Haviam outras crianças, assim como eu, no mesmo aparelho. Olhando para o lado, vejo cerca de três ou quatro pulmões de aço enfileirados lateralmente. Aquelas máquinas cor de amarelo pálido de repente param de funcionar assim que a energia elétrica cai. Rapidamente, várias pessoas entram e cada uma delas vai em direção da parte de trás desses aparelhos. Manejando uma alavanca, para trás e para a frente para que essas câmaras funcionassem manualmente, até a força retornar.
Acredito que fiquei cerca de quinze dias dentro daquela imensa máquina. Infelizmente, o objetivo seria eu não depender de aparelho de respiração artificial, mas, como o resultado não fora o esperando, fora dela, houve a necessidade de fazer uma abertura em minha traqueia e inserida uma cânula, a chamada traqueostomia. A partir desse momento, passei a respirar por um aparelho bem estranho mas que na época salvou muita criança, era chamado de AGA.

Recentemente faleceu com 94 anos um médico americano chamado Forrest Bird. Ele foi o inventor do respirador moderno o qual eu também passei pela experiência de viver pouco tempo com esse aparelho, o Bird, sendo sua cor verde, inesquecível.

Novas experiências, no início dessa fase, foram doloridas. Usando essa cânula, era necessário sua troca uma vez por dia. Todas as manhãs, quando o médico aparecia com uma bandeja de material de troca, eu já temia a dor, antes mesmo de ser a minha vez de trocar. O processo até hoje é bem simples; tira a cânula, limpa a área e o orifício com algum produto anti séptico, passa algum lubrificante e insere a cânula nova. Hoje para mim a cânula não passa de um “piercing” mas, logo no início de minha infância, essas trocas eram sofridas. Haviam médicos que tinham um dom muito especial de trocá-la sem que doesse muito, porém, havia outros que não eram bem assim, e quando eram estes, lágrimas caiam de meus olhos.

 

Tenho lembrança de uma tarde estar olhando a luz do Sol refletir nas paredes, que revelavam um céu azul puro, deixando o quarto bem claro e iluminado pelo dia ensolarado. Quando criança as paredes tanto dos quartos e dos corredores seguiam um padrão inesquecível. Do chão até o teto, era mais de três metros. Um pouco acima de dois metros, nas paredes percorriam uma faixa cimentada de cor marrom escuro com uma largura de uns 10 centímetros. Acima dessa faixa, até o teto, tudo era branco. Abaixo dessa faixa, era como uma parede cheia de pedregulhos lixada. Eu ficava contando cada pontinho dessa parede até que a fome de repente se mostra presente. Deveria ser quase seis horas da tarde, pois um copeiro questionou para uma auxiliar se eu não estava pronto para comer uma comida normal, e não somente sopa. Foi quando então ele disse que traria uma “branda” para eu comer. Instante depois, eu estava comendo arroz, feijão e mistura.