Nosso herói

paulohenrique

Quando eu era criança, não tinha muito interesse em programas jornalísticos, muito menos em esportivos. Achava um tédio massante ficar em frente à TV vendo um bando de gente correndo atrás de uma bola ou uma disparada de carros correndo em uma pista que não tinha mais fim. Bem, essa era minha imaginação na época.

Quando comecei realmente a entender o que vem a ser a Fórmula 1, os corredores famosos eram Emerson Fittipaldi e Niki Lauda. Lembro alguns flashes do acidente que deixou uma cicatriz marcante na face de Lauda.

Passado um determinado tempo, digo, anos, entrou em cena Nelson Piquet. Mesmo assim, nada me prendia a esse esporte. Aos domingos, eu acordava cedo; ainda preguiçoso, graças a noite bem dormida, peço para alguém ligar a TV. Queria ver os desenhos que passavam, ou então “Disneylândia”, um programa exibido pela Globo. Era o domingo perfeito para uma criança que passara seu maior tempo em frente a uma TV em preto e branco.

Mas meu domingo acabava quando surgia na tela a corrida de Fórmula 1 e meus programas favoritos –meus desenhos–, não passariam como deveria. Emburrado, esperava que as horas passassem e aquele esporte chato acabasse.

No decorrer dos anos, porém, algo me dava interesse nesse esporte automobilístico. Sentia que alguém, uma pessoa muito especial, merecia meu apoio, minha torcida, minha vontade de vê-lo correr.

Quando percebi Ayrton Senna, a Fórmula 1 começou a ser, para mim, o mais bem elaborado e incrivelmente fantástico dos esportes. A cada ano, eu vivia interessado nas notícias sobre as façanhas da Lotus – John Player Special negra de Senna.

Agora sim, a F-1  era o domingo perfeito. Ansioso para a largada, eu já estava preparado para dar o meu apoio a Senna. Olhando fixamente a cada curva, ficava atento aos cronômetros que marcavam o tempo de distância do oponente ou o tempo de uma volta completa. “Vai Senna!!!”, eram minhas palavras durante toda a prova. Com alegria, sabia que ele era o piloto que o Brasil precisava.

Durante as corridas, havia sempre um inimigo que eu detestava: o francês Alain Prost. A raiva enraizada em mim me fazia torcer para que seu carro quebrasse, ou que ele desse uma curva errada e pudesse ser ultrapassado por um, dois, até quatro carros, não lhe dando a oportunidade da vitória.

Mas, apesar de Senna ser a estrela das corridas, outro grande piloto me dava a chance de vê-lo com bons olhos: o britânico Nigel Mansell, que, pela audácia e coragem, dava um “chega pra lá” em quem estivesse ao seu lado ou mesmo na frente. Quando estavam os dois juntos, Senna e Mansell eram como a dupla dinâmica contra o implacável Prost.

A paixão por Senna era tamanha que um sonho quase impossível foi realizado.

Era um início de noite num sábado, em 1990. Um médico, do qual infelizmente não recordo o nome, veio nos visitar. Conversamos sobre tudo, filmes, esportes etc.

Quando chegou a hora de ele se despedir, disse que precisava ir embora pois teria que acordar cedo e que fazia parte da equipe médica de Interlagos. Quando eu soube disso, olhei com interesse e perguntei se era realmente a Interlagos das corridas de F-1. Ele respondeu que estaria trabalhando lá devido à corrida.

Perguntei então se, caso eu escrevesse uma carta para Senna, haveria condições de ele entregá-la ao nosso grande piloto. Respondeu que faria o possível, mas que não prometeria, pois algo poderia impedi-lo de chegar a Senna. Como estava na hora de o médico ir embora, perguntei se ele poderia voltar na segunda-feira para buscar a carta, já que a corrida seria no domingo seguinte. O médico disse que passaria bem rápido, apenas para buscar a carta.

Na manhã seguinte, peguei um papel sulfite e comecei a desenhar um pequeno mapa das posições de nossas camas no quarto onde eu e meus queridos irmãos estavam. Como vocês devem saber, na época éramos sete, e assim, numa visão de cima, desenhei cada cama com o nome de cada um. Depois, peguei um caderno, e à mão mesmo, escrevi a Senna, dizendo quem eu era e o que tanto queria: conhecê-lo pessoalmente.

Na segunda-feira, o médico retornou, pegou a carta e foi embora. Na semana depois da corrida, ele veio novamente e disse que entregou a carta para o pai de Senna, e que se desse certo, era só aguardar.

Dois meses depois, mais precisamente no dia 25 de abril de 1990, quarta-feira, ao meio-dia, duas moças, uma enfermeira e uma técnica de laboratório, vieram histéricas até mim, gritando: “Paulo, adivinha!”.

No momento, a única coisa que passava pela minha cabeça era a resposta de outra carta, enviada por mim para o presidente da Gradiente, pedindo a doação de um computador.

Minha resposta às duas moças foi que não sabia do que se tratava, pois não queria chutar algo que certamente era errado.

A insistência das duas para que eu adivinhasse era grande. O acúmulo de “Não sei” da minha parte fez com que elas revelassem algo muito mais esperado e maravilhoso: “O pai do Ayrton Senna ligou e disse que o Ayrton estará aqui com vocês às 16h”.

Como era horário do almoço, houve sim barulho de pratos caindo e se espatifando no chão. Não pude conter a alegria que havia em mim. O que eu senti na hora foi algo indescritível.

O tempo parou, eu estava extasiado. O meu sonho, o sonho de nós sete, de ter o herói em nosso quarto, se tornara realidade. Na ansiedade de chegar a hora do encontro, o silêncio era quebrado com algumas pessoas que brincavam dizendo “Chegou!” bem alto. Sempre que alguém dizia isso, meu coração palpitava, disparava.

Finalmente chega o tão esperado momento, ele passa direto pela porta de nosso quarto. Aos berros, nós sete gritamos: “É aqui, volta, é aqui!!!”.

Ayrton Senna estava em nosso quarto.

O que mais me surpreendeu foi que estava em sua mão o mapinha que desenhei. Ele se aproximou de mim, me deu a mão e perguntou: “Você, é o Paulo?”.

Deus sabe o que somos, o que sentimos e o que nos faz bem. Deus estava como sempre está, presente naquele momento. Ao sentir a mão de nosso herói, mãos essas que nos deram alegria, pensei que tudo que realmente queremos certamente temos a chance de ter. Ayrton Senna estava em nosso quarto, dando sua graça e humildade, em forma de uma amizade digna de sabedoria e bom senso. Ficamos juntos cerca de duas horas, com incansáveis autógrafos e poucas fotos guardadas até hoje.

Ao partir, Senna disse algo incrível. Acreditem ou não, sua última frase durante a visita foi: “Eu vou voltar, mas quando eu voltar, vocês não irão me reconhecer”.

Dada a quantidade enorme de gente que veio ver o herói, Senna não teve a oportunidade de ser somente de nós sete.

No dia 29 de abril de 1994, uma auxiliar de enfermagem entra em nosso quarto e diz que alguém da família de Ayrton Senna ligou. Ele iria nos visitar novamente.

Não há mais herói, não há mais como a Fórmula 1 ser o que era, não há mais humildade nos que hoje correm, tentando nos alegrar com suas vitórias.

Acredito, como disse Senna, que ele voltaria mas que não o reconheceríamos. Ele voltou, e está até hoje com cada um que deu a ele muito amor e carinho em todos os momentos de sua profissão.